Sunday, March 05, 2006

Respectivamente


Pareciam as pernas das girafas das histórias que o meu avô me contava. Sentava-me ao lado dele, no sofá, e ele detrás daqueles óculos enormes, uns óculos de hastes castanhas muito grossas e lentes tremendas, espessas e redondas

- Estás a prestar atenção, Jorge?

sentava-me ao lado dele, no sofá, e ele contava-me histórias de África. Só alguns anos mais tarde percebi o que ele dizia, quando vi na televisão uma girafa a andar na savana. Sempre gostei muito dos programas de animais. E de facto pareciam as pernas das girafas, os teus dedos. Compridos, elegantes, de movimentos lentos e calculados, os teus dedos no meu ombro

- Desculpe, este lugar está ocupado?

os teus dedos a colocar a tua pequena mala de viagem no compartimento superior, no comboio das seis e meia. Nunca gostei muito da tua voz

- Desculpe lá a maçada.

demasiado aguda, principalmente quando dizias frases compridas, dolorosamente compridas e dolorosamente agudas

- Parece impossível o atraso destes comboios, e é principalmente quando uma pessoa tem compromissos e não se pode atrasar que nos acontecem estas coisas, não é verdade?

os teus dedos, que pareciam as pernas das girafas das histórias que o meu avô me contava

- Chamo-me Sílvia, muito prazer.

a apertar-me a mão

- Também sou de Lisboa.

a ajeitar o cabelo.

Nunca fui muito conversador, custa-me muito fazer conversa, sempre detestei falar quando muita gente está a olhar para mim. Ainda me lembro o que me custou dizer ao padre

- Aceito

e ver toda aquela gente que mal conheço ou não conheço a sorrir ou a chorar

(nunca compreendi as pessoas que choram em casamentos)

e ouvir em seguida a tua voz penosamente aguda

- Aceito

Lembro de andarmos de mãos dadas junto à praia, na nossa lua de mel, de noite, tu com a tua voz

- Devias falar mais, Jorge. Estás sempre tão calado.

e eu a olhar para os teus dedos, compridos, elegantes, que faziam mesmo lembrar

palavra de honra

as pernas das girafas das histórias que o meu avô me contava.

Lembro-me de como a aliança ficava mal neles. Demasiado brilhante. É claro que nunca te disse isso

(não sou completamente estúpido)

apenas ficava a olhar para eles, e sorria. Mesmo quando a tua voz doentiamente aguda

- Falamos tão pouco, Jorge. Que se passa?

e os teus dedos na minha perna, compridos, elegantes

- Estás a prestar atenção, Jorge?

Nunca fui muito atento. Não reparei, por exemplo, quando naquela festa, fizeste festas no cabelo daquele teu amigo

(Roberto? Ricardo?)

e mesmo quando, alguns meses depois, me pegaste na mão

- Jorge, isto não pode continuar.

os teus dedos nas minhas mãos

- Jorge, eu e o Rui

(nem Roberto nem Ricardo)

- Jorge, eu e o Rui gostamos muito um do outro.

os teus dedos no meu queixo

- Estás a prestar atenção, Jorge?

quando ficavas nervosa, apertavas os dedos de uma mão com os da outra

- Estás a prestar atenção, Jorge?

Nunca fui muito atento. Não reparei, por exemplo, que quando viraste a maçaneta com os teus dedos

as pernas das girafas das histórias do meu avô

levavas na mão uma mala

(bem maior que aquela que colocaste no compartimento superior)

e que, quando saías, não disseste

- Desculpe lá a maçada.

mas sim

- Adeus, Jorge.

com uma lágrima no olho, parecida com a que tinhas quando disseste, com a tua voz irritantemente aguda

- Aceito

(nunca compreendi as pessoas que choram em casamentos)

Já passaram alguns meses. Já assinei os papéis do divórcio, já soube da notícia do teu casamento com o Rui

(nem Roberto nem Ricardo)

Não fiquei irritado. A sério que não fiquei irritado.

palavra de honra

Tenho é saudades dos teus dedos, compridos, elegantes, de movimentos lentos e calculados. Às vezes vejo o programa dos animais, à espera de ver as girafas das histórias do meu avô. Mas só apanho crocodilos atrás de gnus e leoas atrás de gazelas e às vezes

palavra de honra

até choro

(nunca compreendi por quê)

quando o crocodilo ou a leoa conseguem agarrar o gnu ou a gazela

(respectivamente).

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