Monday, March 20, 2006

Vem ver-me, se quiseres


Por várias vezes pensei em visitar-te. Mas sabes como é, o trabalho, os horários, nem sempre é fácil. Deves lembrar-te de como tinha pouco tempo. Só nos víamos de noite, ao jantar, e de manhã, antes de sair. Lembro-me da tua camisola cor de laranja

- Até logo

enquanto acabavas de comer o teu pão com manteiga. Sempre gostei de tomar o pequeno-almoço contigo. Ia comprar pão do dia e o jornal

dois papos-secos, quarenta escudos; jornal, noventa e cinco escudos; total de cento e trinta e cinco escudos

e tu ficavas a fazer a cama. Depois comíamos e resolvíamos juntos o jogo das diferenças que vinha na penúltima página do jornal. Um desenho qualquer, geralmente estúpido, do lado de outro, igualmente estúpido. Eras mais rápida do que eu. E mais atenta. Eu só encontrava os mais básicos, os mais gritantes

- Aquele tem um guarda-chuva enquanto que aquele não tem

Acho mesmo que já tinhas encontrado essas diferenças mas que não as dizias, que as deixavas para mim, para que ao menos pudesse encontrar algumas

e gostava tanto de ti por isso.

É claro que logo a seguir

- Olha, Afonso, aquele tem a biqueira do sapato preta enquanto que aquele tem a biqueira do sapato cinzenta

quando eu nem sequer tinha reparado que o senhor estava calçado. Eram sempre sete as diferenças

Encontre as sete diferenças entre as seguintes imagens

penúltima página do jornal, noventa e cinco escudos

e raramente as descobríamos

(as descobrias)

todas. Faltava sempre alguma, algum miserável detalhe, alguma minhoquice insignificante que, mesmo para ti, era difícil encontrar.

Ia para o trabalho, num daqueles fatos cinzentos, velhos, que me ficavam enormes, e tu

- Até logo

na tua camisola cor de laranja, com o resto do pão de manteiga numa mão e o jornal aberto na penúltima página na outra. E telefonavas-me às vezes no meio do dia

- Encontrei a última diferença, Afonso. Aquele prédio, ao fundo, tinha oito janelas enquanto que o outro tinha seis. Lembras das janelas, Afonso?

e eu que nem tinha reparado no prédio

- Lembro

e tu contavas-me como foi difícil descobrir e como passaste de detalhe em detalhe, antes de ir tu também para o trabalho, e dizias

- Até logo, espero-te para o jantar

e gostava tanto de ti por isso.

Por várias vezes pensei em visitar-te. Mas sabes como é, o trabalho, os horários, nem sempre é fácil. Cheguei mesmo a comprar chocolates

chocolates, mil e duzentos escudos

daqueles que tu gostas, sem nada por dentro

- Sem mariquices

como tu dizias, só chocolate. Entrei no autocarro com os chocolates e o jornal

chocolates, mil e duzentos escudos; bilhete de autocarro, cento e vinte escudos; jornal, noventa e cinco escudos; total de mil quatrocentos e quinze escudos

e planeava fazer-te uma surpresa. Imaginava que ias ficar admirada por ter deixado crescer a barba. Pensava que talvez nos pudéssemos cumprimentar, beber um café e resolver juntos o jogo das diferenças da penúltima página do jornal. É claro que me deixarias algumas diferenças estúpidas

- Olha, Rita, aquele cão é branco enquanto que aquele é branco com pintinhas pretas

e ia gostar tanto de ti por isso.

Sei que logo em seguida

- Tens razão, Afonso, e olha, ali ao canto, no céu, neste são sete pássaro enquanto que naquele são oito

e eu ainda perdido à procura de diferenças na roupa do caçador. Mas isso não importaria nada. E acho

(não sei porque)

que íamos

(que ias)

conseguir encontrar as sete diferenças. Mesmo as mais insignificantes, as mais ridículas.

Mas acabei por não chegar à tua casa, saí do autocarro algumas paragens antes e voltei a pé para casa. Acho que tive medo

não, não foi medo

(medo é o que tenho de cães grandes e de cobras)

foi antes um receio de que não vivesses mais lá, de que outra pessoa

(um homem)

abrisse a porta, ou então de que te tivesses esquecido de mim. Sei que é estúpido

(é claro que não te esqueceste de mim)

mas imaginei-te mesmo a tentar, com esforço, recordar-te de quem eu sou

(de quem eu era)

e não me apetecia mesmo nada

- Sou o Afonso, não te lembras? Costumávamos resolver o jogo das diferenças da penúltima página do jornal enquanto comíamos pão com manteiga

Não sei se me percebes, mas tinha medo

(medo não, receio)

de que olhasses para mim

- Este tem barba enquanto que aquele não tinha

Por várias vezes pensei em visitar-te. Mas sabes como é, o trabalho, os horários, nem sempre é fácil. Quem sabe um dia tu me visites. Quem sabe um dia te recordes

- Afonso... o que costumava resolver comigo o jogo das diferenças da penúltima página do jornal!

e resolvas passar cá por casa

(continua tudo mais ou menos igual, com a diferença de que agora fechei a varanda e mandei fazer uma marquise)

fechar a varanda e fazer a marquise, duzentos e vinte e cinco mil escudos

e repares logo de entrada

- Este tem uma marquise enquanto que aquele tinha uma varanda

e passemos a tarde a resolver o jogo das diferenças da penúltima página do jornal.

Se não vieres, não fico chateado

a sério que não fico chateado.

Não é como se dependesse de ti. Sou uma pessoa ocupada, sabes como é, o trabalho, os horários. Hoje é que é domingo, e tenho um pouco mais de tempo. Se calhar fico por casa, janto pão com manteiga

um papo-seco, vinte escudos

e como, de sobremesa, aqueles chocolates que tu gostas

- Sem mariquices

chocolates, mil e duzentos escudos

Quem sabe abra o jornal na penúltima página e tente resolver o jogo das diferenças

jornal, noventa e cinco escudos

É claro que sem ti é difícil

(sem ti tudo é difícil)

Provavelmente só conseguirei encontrar as diferenças mais óbvias, mais estúpidas, mais gritantes

- Este tinha um sorriso, enquanto que este está triste

Não há mais diferenças.

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